segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Morri numa terça-feira


Foi numa terça-feira que morri.

Logo eu que detestava terças-feiras. Alguns não gostam do domingo - pela depressão que assola com a iminente chegada da segunda-feira; outros detestam a própria segunda-feira que prevê o retorno de uma semana cheia. Eu gostava da tranquilidade do domingo, inclusive seu final de tarde que era recheado de divagações e mergulhos internos, possibilidade de recomeços; também gostava muito da segunda-feira que era o próprio recomeço, o raiar de um novo dia e esperanças renovadas.

Mas, como o destino gosta de pregar peças, foi numa terça-feira que morri.

Costumam dizer que, segundos antes da morte, vê-se passar sua vida rapidamente diante dos olhos. Não vi. Nem lembro dos instantes anteriores a minha morte. Consigo apenas ver, aqui de cima, meu corpo em decúbito lateral, com o rosto colado ao chão, os olhos semiabertos, a boca num meio sorriso e sangue, muito sangue.

Pode ter sido acidente - um atropelamento -, pode ter sido bala perdida, uma briga, um mal súbito. Não sei. O sangue pode ter sido posterior a minha queda; pode-se sangrar depois da morte? Agora, não adianta mais saber.

Passam-se os minutos e ninguém passa por aqui. Perdi a noção do tempo. Não há mais tempo só há o infinito. Ah, mas enquanto espero, relembro passagens da minha vida. Esse deve ser o momento que a vida passa diante de nós, mas não é mais a vida, nem no ar estou. Isto é um gás liquefeito que faz-me sufocar. Lembrei de quem amei, de outros que deveria amar, alguns que nem deveria ter me importado e outros que poderiam ter prestado atenção em mim. Não me arrependo do nenhuma delas, apenas constato. Havia tempo para consertar, agora já não há mais. 

Chove agora, nem sinto. Meu corpo muito menos. O sangue que há dilui-se na corrente de água. Um garoto passa correndo e nem olha para  mim. Uma senhora se assusta e tremendo liga para alguém. De longe ela fica me observando. Uma moça se aproxima, vagarosamente, sem guarda chuva seus cabelos vão ficando molhados. Bem próxima, ela fica completamente parada e absorvida na imagem do meu cadáver. De longe a sirene preeenche o silêncio que havia na cidade. Nos meus bolsos cigarros, uma caixa de fósforo, um bilhete vencido de loteria, três moedas e uma passagem de ônibus para o dia.

Chega o socorro; tarde demais. No relatório a causa mortis e os pertences que haviam com o corpo: cigarros, uma caixa de fósforos, um bilhete vencido de loteria e três moedas. Daqui de cima vejo a moça: caminhando confiante, sorriso no rosto, embarcando na viagem que nunca mais farei, na terça-feira que morri. 

Arte: Karine Chitolina 

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