quinta-feira, 24 de abril de 2014

Juliana e o joelho meio sangrando meio ralado

Já passaram-se cerca de seis meses desde que nos reencontramos, Juliana e eu. Oi, tudo bem?; tudo e com você?. Também. Ótimo. Ótimo.

Juliana era a guria mais linda do colégio inteiro. Todos a conheciam. Era a Ju. Todos queriam fazer trabalhinhos com a Ju, andar no recreio com a Ju, comprar mirabel e dividir com a Ju, enfim. Eu, naquela época, gostava da Ju. Mas para mim era Juli. Sei, não era o apelido perfeito. Ju é muito mais legal. Nem é mais fácil de chamá-la de Juli, Ju era muito mais simples. Entretanto eu nunca a chamei. No caminho pro colégio eu murmurava Ju-li-Ju-li-Ju-li. A penúltima página do meu caderno estava repleta de Julis: Julijulijulijulijuli. Eu era um garoto na época, 12 anos e o único compromisso era brincar - lembro que nesse tempo, com essa idade, apenas brincávamos na rua e só - aliás, era esse compromisso e o de saber onde a Ju andava.

Pela manhã meus amigos e eu íamos para a aula e combinávamos o programa para a tarde que, invariavelmente, era futebol no campinho da rua. Deixa falar um pouco do campinho: era um antigo campo de futebol abandonado, ficava entre as casas da Dona Lúcia - que ficava brava quando a bola caia no seu terreno - e da Vó Nina. A Vó Nina era vó do Pablo que andava sempre com a gente, e ela aos finais da tarde nos servia ki-suco numa jarra marrom de plástico e... mas estou divagando; o campinho ficava metro e meio abaixo da altura da rua que, eu acho, antigamente servia de arquibancada para os jogos do Estudiantes, que era o nome do time dono da casa. Pois bem, tal terreno estava abandonado há décadas, até que resolvemos dar uma limpada no mato e pregar três troncos num lado e três troncos no outro de um retângulo imaginário, transformando-os em goleiras. Quando a gente jogava todos queriam levar a bola para a ponta direita pois lá era o único lugar onde tinha grama propriamente dita. Legal era quando chovia, aí a gente... bom, divago novamente. Queria dizer que era num campinho de terra que passávamos todas as nossas tardes jogando futebol.

Numa dessas tardes normais de fim de novembro, jogávamos três na linha e um no gol pra cada lado, o placar estava 7 a 4 prá eles, no tradicional e irrepreensível 5 vira e 10 acaba, quando, ao receber uma bola na lateral direita, vejo ela, Juli, parada na calçada observando o jogo. Na mão esquerda ela tinha um pirulito - pois nesse tempo não existia iphone, tablet, muito menos celular -, desses pirulitos que tem chiclete no meio; a bola escapou um palmo do meu alcance e ao tentar retomar a posse levei uma tranca do Pedro, que era grande e forte como pedra, e fui por metros deslizando com meu joelho no chão batido. Meio minuto engolindo as lágrimas já bastaram pra que eu levantasse e retomasse a partida. Normalmente eu faria uma cena, pediria para  meus amigos me segurassem para não partir pra cima do Pedro, que era grande e forte como pedra, e ficaria enrolando para descansar  um pouco. No entanto, não fiz essas coisas nessa tarde. Levantei-me e o jogo continuou. De canto de olho sabia que Juli ainda restava parada olhando o jogo. Olhando pra mim? Com mil escorpiões!!!, não pode ser!!

O jogo terminou. Perdemos de 10 a 6. Joguei feito um Léo Gago depois que Juli apareceu. Errei passes, não conseguia marcar, chutei duas vezes perto da casa da Dona Lúcia - que bufava quando a bola caia perto da casa dela -, e saímos derrotados. Juntamos a bola e nos sentamos perto da calçada. Ninguém falava nada. Geralmente era uma briga, discussões, procura de culpados e algumas vezes até vias de fato. Mas nessa tarde não. Eu achei que era porque a Vó do Pablo não tinha aparecido com o ki-suco. Ledo engano. Só podia ser por Juli. Com um pedacinho ainda da casquinha que fica protegendo o chiclete, do pirulito, ela estava ali nos olhando. Me olhando. Rubinho, que era pequeno como um pequenês, me fez um sinal e a molecada começou a me botar uma pressão. Levantei.

Levantei e me aproximei de Juli. Quinze metros nos separavam e eu já sentia o cheiro de tutti-fruti no ar. Mancava um pouco, mas nem sentia onde estava machucada minha perna. Oi, oi. Tu tá bem? Olhei prá baixo e vi minhas canelas marrons de terra e o joelho meio sangrando meio ralado: bem. Vim te ver. Hmm. Quer um pouco? Então ela estendeu sua mãozinha com o pirulito. Eu, que já não tirava os olhos do pirulito e da boca dela - acho que era só do pirulito - pois bem, eu que estava ali disse: hmzlhersmsairtertonhdfsrt, esorthjorseamoidster. Que, lógico, significava: Não, baby, não quero o pirulito. Vou te tomar em meus braços e te beijar. Ela me olhou nos olhos, se aproximando e sorrindo, me beijou. Uau!! Por toda a terra que havia em nosso campinho, ela me beijou. Mais uma lambida no pirulito e me perguntou: quer outro? hmzlhersmsairtertonhdfsrt, esorthjorseamoidster. Dessa vez fechei os olhos, fiz pose e esperei o beijo; e que beijo!! Depois disso ela apenas balançou o corpo, pulou o cordão da calçada me lançou um tiau e partiu.

Esorthjorseamoidster!!

Voltei tremendo as pernas. Todos os sete que restavam perto calçada, atrás da goleira, estavam pasmos. Não acreditavam no que tinha acontecido. Nada ainda havia sido dito. E nem seria. Sentei-me no meio dos moleques, do lado do Pedro, que era grande e forte como pedra, e ele apenas deu-me um tapinha na nuca e riu baixinho. A Vó Nina trazia nosso ki-suco, geladinho, dentro da jarra marrom, de plástico.

Seis meses atrás nos encontramos, eu e Juliana. Falamos algumas banalidades. Nada sério. Eu lembrei na hora desse dia - acho que ela não - mas nada falei dessa memória. Passamos vinte minutos, meia hora juntos. Ela disse que tinha que ir embora. Falou: Tiau! Eu: Esorthjorseamoidster!! Assim que ela entrou no carro e deu a partida eu dei um passo e senti meu joelho formigar. Ah, Juli, nesta noite, há seis meses atrás, voltei pra casa mancando, com o joelho meio sangrando meio ralado.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Sobre Jackie R.


De um modo incomum conheci Jackie.

O mar estava calmo e, não fossem algumas poucas nuvens, o céu estava no seu azul mais bonito. Foi quando da água ela surgiu. De início achei que delirava, a mitologia fazia-se real aos meus olhos tal sereia exalando seus encantos. Mas foi completa mulher quem pisou na areia. Nem parecia pisar, flutuava apenas; um gingado sensual que estremece-me até quando agora escrevo. Languidamente curvou-se, tomou a toalha e começou a se secar. O mar parou. Uma era demourou-se nesse ato; o sol deve ter-se posto e retornado por milhares de séculos. Absorto nessa magia deixei-me ficar, embasbacado frente a essa pintura.

Minutos após - horas? dias? anos? - Jackie se aproximou. Meus olhos não conseguiram desviar-se, fitava seu dançar e seu meio sorriso perfeito. Com seus lábios semiabertos pronunciou seu nome: Jackie. Jaaaaaackie, assim mesmo com pares de 'as'. Não saberia, hoje, narrar se falei alguma coisa naquele momento. Entretanto foi quando seus dedos roçaram-me o braço que o chão sumiu sob meus pés. Ela era toda fogo! Eu era água; os líquidos do meu corpo principiaram a ferver e então evaporei. Não estava mais ali; sumiram-se os sons, as cores, os gostos, o tempo. Quando voltei a mim só vi ela indo-se e seus cabelos bailando ao vento.

Jackie. Jaaaaaackie!

Uma tarde de verão foi tudo que restou. Já é outono, mas consigo ainda sentir teus dedos na minha pele. Nada falei-te aquele dia; nunca ousarei falar-te outra vez. Sei que algumas paixões e amores podem durar um dia, um mês, diversos anos ou uma eternidade; aquele sentimento que experimentei teve a duração exata de um quebrar de onda.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Sobre Virgínia O.


Noite dessas não conseguia dormir; rolava na cama e lembrava-me de Virgínia O..

Ah, Virgínia O.!

Lembrei-me de como passávamos nosso tempo juntos. Não havia promessas nem ilusões nem mentiras. Não fazíamos planos futuros, não tínhamos compromisso com nada além daquelas horas em que estávamos. Vivíamos apenas o presente. E ali apenas éramos. Um para o outro; tudo e nada. O fluir do tempo sem medo do que viria. Víamos a noite cair, a neblina cegar e o dia amanhecer; torcíamos para que naquele momento voltasse tudo: o dia amanhecer, a neblina cegar e a noite cair. E Virgínia O. sorria. Falava, ouvia, tremia, sussurrava.

Na despedida, nada em especial. Quem sabe nos encontraríamos, certeza que não. Mas nada disso importava...

Nunca mais vi Virgínia O..

Pouco importa. Sei que o que vivemos ninguém poderá nos tirar. Permanece a lembrança do tudo que pouco vivemos.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

lentes








através dessas lentes
vejo a nitidez
do mundo a minha volta
as linhas são perfeitas
as cores têm seu lugar
nada se mistura, tudo se encaixa
verde, azul, vermelho
o cinza, o preto, o branco
os olhos, sorrisos
risos, faces, pessoas
lugares, paisagens
simetrias.
mas é ao tirar os óculos
que o verdadeiro mundo se revela
as cores misturam-se
caleidoscópio
ninguém me vê
e o que vejo
é o que quero ver
sem horizonte
sem limite
nada está programado
não há controle.
e mesmo assim
tu
eu diviso
vendado saberia
onde estás
quem és
e o bem estar
que me proporciona.