terça-feira, 1 de março de 2016

sobre Cláudia

Há quatro anos conheci uma garota. Conheci é apenas modo de dizer. Há quatro anos que a vi pela primeira vez. Foi quando nos encontramos na entrada do meu prédio. Percebi sua dificuldade em segurar o portão de entrada com três caixas grandes em volta dela: boa tarde; boa tarde, posso ajudá-la?; claro, obrigada. Ela era a pessoa mais linda que eu jamais havia visto e sua voz, motivo dessa lembrança, soou como música aos meus ouvidos e também foi a ruína do meu coração.

Eu morava sozinho num condomínio de prédios iguais entre si, com pequenos apartamentos constituídos de sala/cozinha, um banheiro, um quarto e uma pequena área de serviço. Trabalhava todo o dia no centro da cidade e, à noite em casa, gastava meu tempo com meus livros, discos e cozinhando apenas pra mim. Nada fora da rotina acontecia, talvez uma noite me demorasse num balcão de bar, talvez outra entrava em uma sala qualquer de cinema. Até que a moça no portão fizesse meu mundo de pernas pro ar.

No nosso primeiro encontro ajudei Cláudia - era esse o nome dela - a carregar duas de suas caixas para dentro do prédio. Acompanhei-a e chegamos ao quarto e último andar onde ficava o meu apartamento. Para surpresa dela, sua porta era ao lado da minha. Falou-me que havia mudado a dois dias e que essas eram as últimas coisas que traria para o novo lar. Deixei as caixas aos seus pés e nos despedimos - tchau, até mais - ali mesmo.

Cláudia também era uma solitária. Eu a encontrava eventualmente no portão do prédio ou no corredor do nosso andar. Cozinhava para si ouvindo música. Tocava mpb, jazz, música clássica, erudita, todos os tipos, entretanto o mais recorrente era o bom e velho rock & roll. Eu, não muito acostumado com televisão, desligava tudo que poderia atrapalhar o momento e compartilhava com ela esses instantes. Sentia, também, o aroma que provinha de sua cozinha: manjericão, açafrão, alecrim; comidas chinesas, mexicanas, molhos, tortas e bolos. Sentia tudo isso de dentro do meu pequeno apartamento.

Curioso que quase nunca nos falávamos. Havia apenas um momento no mês em que trocávamos algumas palavras: o entregador da conta da luz deixava sempre, por descuido, a conta de Cláudia dentro da minha caixinha. Enquanto subia as escadarias, folheando as correspondências, separava a da moça e deixava por debaixo de sua porta ou, no caso de a encontrar no caminho, entregava pessoalmente. Ela sempre sorria, desculpava-se pelo transtorno e me agradecia.

Por quatro anos foi assim. Tudo que eu soube foi o que eu imaginei. Nem uma vez sequer trocamos informações pessoais ou tivemos alguma conversa mais profunda. Apesar de contar os minutos para chegar a minha rua e, num lance de sorte, encontrá-la, jamais falei isso para Cláudia.

Certa noite demorei-me numa livraria próxima ao meu trabalho, ao entrar no prédio já sentia o maravilhoso cheiro de ervas finas que dominava o ambiente. Sem dúvida alguma eu sabia que provinha do apartamento da minha vizinha. Lentamente atravessei o corredor e demorei-me na porta. Respirei aquele ar e pensei: qual prato estará preparando hoje? Ao abrir minha porta vi um rapaz vindo no corredor, com um aceno de cabeça nos cumprimentamos e eu adentrei meu apartamento. Ouvi o barulho de batidas na porta da vizinha e um resquício de sua voz. Tocava um blues antigo que eu escutava deitado na minha cama.

Na manhã seguinte acordei muito antes do normal, a voz de Cláudia me acordava. Não era voz, eram gemidos, eram suspiros e gargalhadas. Poucos segundos duraram. Agoniado e engolindo em seco, levantei-me fiz o café e fiquei sentado na sala escura. Nada se ouvia, ainda, na cidade. O dia clareou e eu fui pra porta, uma eternidade se passou no corredor e escadaria do prédio. No portão encontrei Cláudia. Eu, com olheiras, entregava o sono abortado; ela, vestindo apenas uma camiseta, ruborizava enquanto fechava o portão. Abrindo minha caixa de correspondência esbocei um falso riso. Retirei minha conta de luz que jazia lá, solitária. Ao meu lado, Cláudia abriu a dela, e expressando decepção retirou a sua, que estava lá no fundo da caixa, solitária também.

Nenhum comentário:

Postar um comentário