quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Natureza jurídica dos animais

Por Adriano Marteleto Godinho
Revista Jus Navigandi

Em algumas oportunidades, já foram divulgadas notícias acerca da impetração de habeas corpus em favor de animais. Há alguns anos, o Superior Tribunal de Justiça analisou um caso em que este instrumento foi utilizado por um suposto proprietário de dois chimpanzés, que pretendia evitar que os animais fossem retirados de cativeiro e introduzidos na natureza. Para justificar a via eleita, o interessado alegou que o chimpanzé possui 99% de DNA humano. A alegação não foi suficiente para convencer os julgadores, que entenderam não ser cabível a medida eleita em favor de animais.
A questão que se coloca, pois, diz respeito à identificação da natureza jurídica dos animais. Se puderem ser considerados pessoas, a impetração de habeas corpus passa a ser admissível; caso seja adotada a posição de que os animais são coisas, torna-se descabida a via em apreço, uma vez que a Constituição da República, em seu art. 5º, LXVIII, assim estabelece: "conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder". Assim, deve alguém estar ameaçado em sua liberdade de locomoção, o que pressupõe que a tutela somente pode ser conferida às pessoas.
Tomamos partido: deve ser afastada qualquer possibilidade de reconhecimento dos pretensos "direitos dos animais", o que, aliás, nos projeta para muito além da mera questão da legitimidade para a impetração de habeas corpus. Não cabe reconhecer personalidade jurídica aos animais, que, portanto, continuam a ostentar a condição de coisas, posição que encontra correspondência no art. 82 do Código Civil, que como tal qualifica os denominados semoventes.
A tentativa de se qualificar animais como pessoas é inadmissível, por várias razões: em primeiro lugar, porque parece confundir tutela legal com direito subjetivo. É certo que a lei confere proteção aos animais, proibindo-se, entre outras condutas, a caça indiscriminada ou os tratamentos cruéis, mas daí não decorre que eles tenham direitos. Veja-se que a ordem jurídica também resguarda, entre outros bens e valores, o patrimônio histórico e cultural (art. 5º, LXXIII da Constituição da República), o que não pode significar que a salvaguarda das nossas obras de arte e construções seculares permita dizer que elas tenham direitos por si mesmas.
Num outro prisma, esta concepção inevitavelmente acaba por degradar o próprio ser humano. Se o objetivo é conferir tutela aos animais, não é necessário promovê-los à condição de pessoa, bastando que a lei se encarregue de estabelecer significativo âmbito de proteção e de cominar sanções a eventuais violações neste campo. Os defensores dos pretensos "direitos dos animais" costumam qualificar como "especistas" àqueles que se opõem à idéia: segundo entendem, seria injustificadamente discriminatório colocar a espécie humana em um patamar superior à dos demais seres vivos. Não há, contudo, como negar a noção de que o ser humano está na origem e no fim do direito, por ser o criador e o destinatário das normas jurídicas. A pessoa humana ocupa posição central no ordenamento, e tudo mais gravita em torno dela – inclusive a proteção que se confere aos animais, que se dá também em consideração de interesses humanos. Há alguns anos, aquando do surto da gripe aviária, correu o mundo a notícia de que milhares de aves foram sacrificadas, para impedir a disseminação da doença entre as pessoas. Se a eliminação de uma epidemia pode ser atingida pela erradicação dos seus portadores, por que não se admitiu, à época do surto do vírus ebola, que vidas humanas fossem suprimidas? A resposta, para "especistas" ou não, só pode ser a mesma: legitimamos o sacrifício de animais, mesmo que aos milhares, para a preservação da espécie humana, o que significa que admitimos subjugar outros seres vivos em nome dos nossos interesses; mas jamais admitiríamos assassinar pessoas, ainda que o pretexto fosse a tutela de outras pessoas.
Além disso, o reconhecimento da personalidade dos animais geraria situações inexplicáveis: como justificar que pudéssemos ser proprietários de animais, aliená-los, sacrificá-los ou mesmo consumi-los, se fossem designados como pessoas? Como harmonizar a noção de que os animais pudessem ser, ao mesmo tempo, sujeitos e objetos de direitos? A verdade é que a noção de personalidade jurídica é incompatível com a própria essência dos animais. De plano, não se concebe a hipótese de animais assumirem obrigações na ordem civil. Por outro lado, também é de se afastar, de imediato, a possibilidade de se imputar aos animais direitos, sejam eles patrimoniais ou mesmo pessoais. Como reconhecer aos animais, por exemplo, a titularidade de um patrimônio ou dos direitos da personalidade? Como dizer que um animal, aprisionado e exposto num zoológico, possa gozar dos direitos à imagem, à liberdade e à intimidade, entre outros?
Conferir aos animais a condição de pessoas seria recorrer a uma retórica hipócrita e vã, para cair em uma fórmula inútil. De nada vale rotular os animais como pessoas, para adiante esvaziar o conteúdo desta pretensa personalidade. Por isso, mantenha-se, quanto aos animais, a qualidade de coisas, às quais se pode conferir especial tratamento, uma vez que a não concessão de personalidade não significa a inibição da sua tutela.

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